2.º Policy Paper

22 de abril de 2021

Estudo diagnóstico sobre as mulheres no sistema de prostituição em Lisboa

Investigadora Responsável: Maria José da Silveira Núncio
Afiliação: ISCSP ULisboa (Instituto de Intervenção e Políticas Sociais)

Ilustrações de Raquel Pedro

Introdução

Este estudo-diagnóstico sobre as mulheres no sistema de prostituição em Lisboa, enquadra-se no plano de atividades da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, mais concretamente, no âmbito do projeto EXIT II – Direitos Humanos das Mulheres a não serem prostituídas, que tem como objetivos:

  • Combater o sistema de prostituição;
  • Defender os direitos humanos das mulheres, designadamente o direito fundamental a não serem prostituídas;
  • Contribuir para a mudança de atitudes e comportamentos face ao sistema da prostituição;
  • Contribuir para a elaboração de propostas de medidas e serviços de apoio à saída desse sistema.

Pretende-se, com esta investigação, que o conhecimento mais aprofundado acerca das mulheres no sistema de prostituição, numa área geográfica delimitada, possa constituir uma base, devidamente fundamentada, para o desenvolvimento de uma proposta de estratégia nacional de apoio à saída das pessoas do sistema da prostituição, estratégia essa, que se consubstancie numa alternativa acessível, adequada e realista para as mulheres que saem, ou ambicionam sair, da prostituição.

(A prostituição é) a vida mais desgraçada que alguém pode ter. Morremos vivas”

“Carla” (42 anos)

O sistema de prostituição radica em diferentes desigualdades, entre as quais se destacam, claramente, as desigualdades entre mulheres e homens e as persistentes assimetrias de poder entre homens e mulheres, que conduziram, e conduzem, entre outros fatores, à objetificação das mulheres, à sua submissão no domínio privado e secundarização na esfera pública.

Síntese dos resultados preliminares

Até 16 de abril foram realizadas:

  • 22 entrevistas a mulheres que estão, ou estiveram, no sistema de prostituição, com foco nas suas histórias de vida, no conhecimento indireto dos compradores de sexo e do sistema de prostituição. As idades das mulheres entrevistadas variam entre vinte e quatro e cinquenta e cinco anos. Seis mulheres (27%) têm um percurso migratório e três delas (duas brasileiras uma romena) encontram-se, neste momento, em situação irregular no país. Três outras mulheres, nascidas no estrangeiro (Brasil e Cabo Verde) são já cidadãs portuguesas. Relativamente aos locais de nascimento em Portugal, dispersam-se por todo o território continental. Destas entrevistadas, 77% permanecem no sistema de prostituição.
  • 32 entrevistas a profissionais com intervenção direta junto das mulheres na prostituição, representando quatro grandes áreas: intervenção social (53%); investigação criminal (19%); justiça (13%) e saúde (9%). Foram, ainda, entrevistados autarcas (6%).
  • Análise simples e bivariada de anúncios, publicados no Correio da Manhã, no período entre 24 de novembro e 15 de dezembro de 2020, correspondendo a um total de 290 anúncios.

Cruzando as entrevistas realizadas e a análise a anúncios de jornal, apresentam-se como resultados preliminares deste estudo:

  • A vulnerabilidade socioeconómica das mulheres e a influência desta vulnerabilidade na entrada e permanência no sistema de prostituição.
  • A relevância das questões da baixa autoestima e autoconceito, tanto para a entrada no sistema de prostituição, quanto para a dificuldade de saída do mesmo.
  • A prevalência de contextos familiares violentos (com vitimação ou exposição a diferentes tipos de violência).
  • A prevalência de contextos comunitários socioeconomicamente débeis e de ambientes de exclusão social.
  • A prevalência de relações afetivas marcadas pela dependência, pela toxicidade e pela violência.
  • A dificuldade na vivência da intimidade fora do sistema de prostituição.
  • Os filhos e as filhas como preocupação prioritária (em matéria económica e de “vergonha”).
  • A reduzida qualificação escolar (herdada da família de origem) e profissional e o predomínio de percursos de trabalho marcados pela indiferenciação, precariedade e desemprego.
  • A pobreza e a carência económica vividas pelas mulheres no sistema de prostituição.
  • A agudização das carências em contexto de pandemia (com a entrada/reentrada de mulheres no sistema) e as assimetrias nas respostas ao nível da área metropolitana de Lisboa.
  • O triângulo toxicodependência, situação de sem-abrigo e prostituição de rua.
  • O consumo de drogas, nomeadamente de substâncias tranquilizantes, iniciado em contexto de prostituição, quer por imposição de proxenetas e de redes, quer como forma de atenuar os impactos emocionais, psicológicos e físicos das vivências prostitucionais.
  • A ausência de um acompanhamento na saúde, mesmo quando tomam medicação regularmente.
  • A dissociação entre a circunstância pessoal de mulher prostituída, relativamente às visões pré-existentes e estereotipadas das mulheres nessas circunstâncias.
  • Os juízos, por parte das mulheres, relativamente aos compradores, associados a estereótipos acerca da sexualidade masculina e das práticas sexuais “normais”.
  • A consciência do estigma social que impende sobre a prostituição, potenciadora de baixa autoestima e perceção de “falta de merecimento”.
  • A constatação da decadência e degradação geradas pela prostituição e a consequente “perda de valor”, que levam ao medo do envelhecimento.
  • A vitimação das mulheres, por compradores, proxenetas e pela própria comunidade.
  • A existência de múltiplas necessidades de apoio, geradora de uma perceção de impotência e de atitudes abúlicas relativamente à vida.
  • O desconhecimento de apoios e/ou a avaliação da sua insuficiência, pelas mulheres.
  • A ausência de expectativas de futuro ou as expectativas difusas/irrealistas.
  • A perceção de ganho de autoestima nas mulheres saídas do sistema.
  • O reconhecimento da importância de apoio (formal e informal) no processo de saída do sistema.
  • Algum desconhecimento ou opinião difusa, por parte das mulheres, relativamente ao enquadramento político-legal.
  • A identificação de necessidades prioritárias: habitação, apoio económico, acompanhamento de saúde e tratamento de dependências, inserção no mercado de emprego, regularização e proteção das mulheres migrantes e traficadas.
  • A perceção de insuficiência de respostas e da sua articulação, por parte das e dos profissionais das áreas da intervenção social e da saúde, por contraponto a uma maior satisfação, em relação a respostas e articulação, por parte de profissionais da segurança e da justiça.
  • A consciência, por parte das e dos profissionais, do carácter pluridimensional do sistema de prostituição e da necessidade de respostas em dois planos: no da intervenção individualizada, com as mulheres e no das políticas públicas multissetoriais.
  • A perceção, por parte das e dos profissionais, da importância da mudança de mentalidades e da formação (na sociedade global e para os grupos profissionais), para desconstrução de estereótipos. Desconhecimento e confusão conceptual em matéria de enquadramento legal por parte dos profissionais, associado, também, a entendimentos divergentes de conceitos como emancipação, liberdade ou empoderamento.
  • O reconhecimento, pelas mulheres prostituídas e pelas/os profissionais da diversidade dos compradores, sendo as diferenças determinadas pelos locais e tipo de prostituição.
  • A constatação da ligação entre o recurso à prostituição e o consumo de pornografia.
  • A identificação da realização de fantasias, parafilias ou práticas sexuais que não têm com as suas parceiras, como fatores determinantes na compra de sexo.
  • O reconhecimento, pelas mulheres e profissionais, de violência associada ao sistema de prostituição: violência dos compradores de sexo, dos proxenetas, das entidades públicas, da sociedade global e da própria atividade prostitucional.
  • A verificação de uma crescente complexidade e violência do sistema de prostituição e do aumento da prostituição em espaços fechados (apartamentos, bares, casas de massagem) acompanhado da diminuição da prostituição de rua.
  • A constatação do papel de redes transnacionais organizadas que operam a partir de zonas de maior pobreza e vulnerabilidade social das mulheres/raparigas, com recurso a estratégias de aliciamento diversificadas, implicando a necessidade de abordar este problema numa ótica transnacional e da intervenção realizada a montante a jusante, isto é, na origem e no destino.
  • A existência de diferentes fatores diferenciadores de valorização das mulheres, associados a estereótipos como a idade, a nacionalidade e/ou etnia, ou as características físicas e psicossociais, reconhecidos tanto pelas mulheres como pelas/os profissionais, e que fica, também, patente nos anúncios analisados.

A criação de uma entidade responsável pela monitorização de uma estratégia nacional de prevenção e apoio à saída de mulheres do sistema de prostituição e das respostas específicas, agregando diferentes entidades públicas e privadas com atuação direta ou indireta na área e o conhecimento científico referente à prostituição – um Observatório do Sistema de Prostituição.

Recomendações preliminares

A partir destas dimensões podem tecer-se algumas recomendações preliminares, para a definição de políticas públicas neste domínio, que apresentaremos, de seguida, agrupando-as em cinco dimensões, também elas identificadas, ainda, de forma exploratória:

Prevenção

  • A aposta na qualificação escolar de jovens, em particular de raparigas oriundas de contextos de maior vulnerabilidade socioeconómica, com ligação ao emprego (cursos profissionalizantes promotores da igualdade de oportunidades e da igualdade entre raparigas e rapazes).
  • Acompanhamento continuado e efetivo de situações de risco de abandono precoce da escola (associado à desvalorização da qualificação escolar por parte dos contextos socioeconómicos e familiares de origem bem como a contextos familiares marcados pela violência).
  • A deteção precoce, de situações de violência, abuso e exploração em contexto familiar, ligados a situações de violência doméstica, exclusão social, alcoolismo, toxicodependência ou valores dominantes nos contextos sociais de referência.
  • A atuação nas escolas, nomeadamente através do desenvolvimento e implementação de protocolos de atuação que visem a identificação e o apoio a crianças e jovens que sejam vítimas de situações de violência no namoro, de divulgação e partilha de imagens ou conteúdos íntimos e/ou de cariz sexual, ou expostas a contextos familiares e sociais favorecedores de entrada no sistema de prostituição.
  • A cooperação e atuação transnacional célere e efetiva na identificação e prevenção de situações de tráfico e aliciamento.
  • O maior recurso, por parte dos órgãos de polícia criminal, aos conhecimentos e sinalizações feitos pelas instituições sociais que trabalham com pessoas em situação de prostituição, com salvaguarda de garantia de segurança.
  • A sinalização e atuação imediata e preventiva nas situações em que haja suspeita de tráfico.
  • A disseminação de informação nos locais de entrada no país de respostas de apoio (com garantia de segurança) a vítimas de tráfico (ex. Linha Telefónica de Apoio).
  • A colaboração com entidades privadas, designadamente do setor turístico, hoteleiro e de diversão, na celebração de compromissos de combate à prostituição e à pornografia.
  • O controlo e regulamentação de plataformas online utilizadas para venda de pornografia e para prostituição, nomeadamente, de menores.

Conscientização

  • A realização de ações, nas escolas, apresentando as histórias de vida das mulheres na prostituição e mostrando como a prostituição não empodera, não enriquece, nem transforma os contextos de vulnerabilidade de partida, antes, pelo contrário, acentua essa mesma vulnerabilidade;
  • O desenvolvimento de ações e campanhas de sensibilização, concebidas a partir dessas histórias das mulheres, que desmistifiquem a imagem de “glamour” associada ao sistema de prostituição;
  • A disseminação de campanhas de conscientização dirigidas aos homens – e à sociedade em geral – sobre a compra de sexo;
  • A implementação de campanhas de sensibilização da sociedade, e muito concretamente das pessoas mais jovens, para a promoção de uma sexualidade livre, baseada no consentimento, igualdade e prazer mútuos.
  • O desenvolvimento de campanhas de educação e sensibilização para desconstrução da validação social da pornografia.
  • O desenvolvimento de campanhas de sensibilização da sociedade para a questão da prostituição e a desconstrução dos estigmas potenciadores de exclusão social.
  • A produção e disseminação de conhecimento científico sobre o sistema da prostituição.

Apoios e serviços

  • A formação de diferentes agentes sociais com intervenção junto das pessoas em situação de prostituição, de acordo com as suas diferentes áreas de atuação, assumindo particular relevância profissionais de forças policiais, para desconstrução de receios e inseguranças manifestados por estas mulheres.
  • A criação de equipas especializadas nas forças policiais e de segurança, para lidar com pessoas em situação de prostituição.
  • A articulação entre entidades públicas (centrais e locais) e organizações não governamentais, em particular associações de mulheres pelo conhecimento, reflexão crítica e capacidade de agir com e para as mulheres.
  • A maior articulação entre as instituições com intervenção direta nesta área, numa lógica de trabalho em rede e aproveitamento de sinergias.
  • A identificação das situações de exploração e/ou tráfico e a atuação imediata de proteção das vítimas.
  • A criação de uma estrutura de apoio de emergência para vítimas de tráfico ou de aliciamento para prostituição, com a disponibilização de uma Linha de Contacto de Emergência, amplamente divulgada, quer nos locais de entrada no país, quer em zonas de maior concentração de prostituição.
  • O reconhecimento da condição de sobreviventes para as mulheres exploradas, obrigadas a prostituir-se e/ou traficadas, com os consequentes apoios psicossociais, legais, económicos e de acolhimento.
  • A identificação e atuação nas situações de mulheres prostituídas em situação de sem-abrigo.
  • O estreitamento de parcerias entre instituições sociais e autarquias, na criação de respostas e estruturas de apoio.
  • O desenvolvimento de parcerias e protocolos, com o sector privado, para criação de emprego protegido para mulheres que pretendem sair do sistema de prostituição, nomeadamente, através de contrapartidas fiscais.
  • A homogeneização das respostas específicas para as pessoas em situação de prostituição, a nível nacional, numa lógica de Estratégia Nacional de Apoio.
  • A criação de uma entidade responsável pela monitorização de uma estratégia nacional de prevenção e apoio à saída de mulheres do sistema de prostituição e das respostas específicas, agregando diferentes entidades públicas e privadas com atuação direta ou indireta na área e o conhecimento científico referente à prostituição – um Observatório do Sistema de Prostituição.

Responsabilização

  • Maior robustez jurídica dos crimes de lenocínio simples e agravado.
  • Mais investigação e condenações por tráfico de seres humanos.
  • A criminalização de:
    • proprietários de bares e pensões que lucram com a prática da prostituição.
    • operadores turísticos e hoteleiros que lucram com o sistema de prostituição.
    • plataformas online de prostituição.
    • divulgação e publicitação da prostituição.
    • E dos compradores de sexo, na lógica de que a procura é geradora de oferta, seguindo os modelos legais já implementados noutros países.
  • A condenação efetiva de quem comete os crimes acima referidos.

Valorização das mulheres

  • A criação, com a participação de mulheres que estão ou estiveram no sistema de prostituição, de uma estratégia nacional de apoio à saída do sistema de prostituição com o desenvolvimento de respostas ao nível:
    • do acesso à habitação;
    • de regularização e proteção das situações de mulheres migrantes e traficadas.
    • da formação ao nível de competências sociais e rotinas quotidianas;
    • da qualificação e treinamento profissional;
    • da inserção no mercado de trabalho;
    • do apoio na saúde (mental, física e de tratamento de dependências);
    • da criação de respostas orientadas para o envelhecimento das mulheres que estão no sistema de prostituição;
    • do acompanhamento psicossocial continuado, quer através de apoio individualizado, quer através da participação em grupos de reflexão.
    • da implementação da “figura de referência”, orientada para o apoio individualizado e para a coordenação das respostas adequadas.
  • A formação, de mulheres saídas do sistema, para se constituírem como “vozes” das vivências das mulheres no sistema de prostituição, numa lógica de advocacia social.
  • A promoção da participação ativa das pessoas em situação de prostituição nas decisões acerca do enquadramento político-legal nesta matéria.

Desumanização é a melhor palavra. Ninguém é humano: quem se prostitui torna-se um objeto, o comprador é a fonte do dinheiro e da agressão.”

“Quitéria” (55 anos)

Equipa de Investigação

Maria José da Silveira Núncio (Docente no ISCSP ULisboa e Doutorada em Sociologia) – coordenação
Carla Isabel Cruz (Docente no ISCSP ULisboa e Doutorada em Ciências da Comunicação)
Natália Koyama (Licenciada em Jornalismo e Mestranda em Política Social)
Rita Sarmento (Licenciada e Pós-Graduada em Criminologia)