Policy Paper

25 de janeiro de 2021

Estudo diagnóstico sobre as mulheres no sistema de prostituição em Lisboa

Investigadora Responsável: Maria José da Silveira Núncio
Afiliação: ISCSP ULisboa (Instituto de Intervenção e Políticas Sociais)

Ilustrações de Raquel Pedro

Introdução

Este estudo-diagnóstico sobre as mulheres no sistema de prostituição em Lisboa, enquadra-se no plano de atividades da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, mais concretamente, no âmbito do projeto EXIT II – Direitos Humanos das Mulheres a não serem prostituídas, que tem como objetivos:

  • Combater o sistema de prostituição;
  • Defender os direitos humanos das mulheres, designadamente o direito fundamental a não serem prostituídas;
  • Contribuir para a mudança de atitudes e comportamentos face ao sistema da prostituição;
  • Contribuir para a elaboração de propostas de medidas e serviços de apoio à saída desse sistema.

Pretende-se, com esta investigação, que o conhecimento mais aprofundado acerca das mulheres no sistema de prostituição, numa área geográfica delimitada, possa constituir uma base, devidamente fundamentada, para o desenvolvimento de uma proposta de estratégia nacional de apoio à saída das pessoas do sistema da prostituição, estratégia essa, que se consubstancie numa alternativa acessível, adequada e realista para as mulheres que saem, ou ambicionam sair, da prostituição.

Contextualização

A necessidade de combater o sistema de prostituição, enquanto atentatório contra os Direitos Humanos patentes em importantes compromissos assumidos pelo Estado português, ratificados num conjunto de convenções internacionais e ao assumir compromissos a nível europeu e global, nomeadamente, no que se refere à prevenção e ao combate à violência contra as mulheres e raparigas, e à prevenção e combate ao tráfico de mulheres e crianças para fins de exploração sexual; a verificação da ausência de uma estratégia de resposta integrada, e disponível ao nível nacional, de apoio à saída de pessoas do sistema de prostituição; a consideração de que esta constitui uma matéria relativamente à qual prevalecem representações sociais estigmatizantes sobre as pessoas na prostituição mas tolerantes face aos compradores de sexo e, finalmente, a constatação de que estamos perante um problema social ao qual urge dar resposta, quer em matéria legislativa, quer em matéria de intervenção social adequada, constituem os principais fatores que justificam a realização deste estudo.

As nossas desgraças vinham todas da miséria em que a gente vivia. O meu pai gastava quase tudo o que ganhava, e era pouco, no vinho. A gente vivia de esmolas: das esmolas dele, quando se lembrava que tinha uma família para sustentar e das esmolas da outra gente, que tinha pena. (…) Acho que não faltava lá em casa nenhuma forma de violência. Há uns anos, eu estive numa casa de abrigo e a psicóloga de lá fazia-nos falar da violência que não era só física, que era psicológica, sexual, de dinheiro… pois na minha família havia delas todas.”

“Carla” (42 anos)

O sistema de prostituição radica em diferentes desigualdades, entre as quais se destacam, claramente, as desigualdades entre mulheres e homens e as persistentes assimetrias de poder entre homens e mulheres, que conduziram, e conduzem, entre outros fatores, à objetificação das mulheres, à sua submissão no domínio privado e secundarização na esfera pública.

O conhecimento aprofundado acerca do sistema de prostituição pode constituir uma base para o desenvolvimento de uma proposta de estratégia nacional de apoio à saída das pessoas do sistema da prostituição

Adotaram-se, para tal, os seguintes pressupostos de base:

  • O sistema de prostituição radica em diferentes desigualdades, entre as quais se destacam, claramente, as desigualdades entre mulheres e homens e as persistentes assimetrias de poder entre homens e mulheres, que conduziram, e conduzem, entre outros fatores, à objetificação das mulheres, à sua submissão no domínio privado e secundarização na esfera pública. A estas desigualdades acrescem as discriminações múltiplas, nomeadamente determinados grupos sociais de mulheres que se encontram em situação de maior vulnerabilidade face ao sistema da prostituição – por exemplo, mulheres em situação de pobreza, em situação de sem abrigo, migrantes, menos qualificadas e em situação de desemprego prolongado, com crianças (famílias monoparentais), entre outras.
  • O sistema de prostituição, em que entroncam fenómenos como o tráfico humano e a pornografia, constitui um problema social e uma negação de referenciais de direitos humanos fundamentais e legalmente ratificados.
  • A prostituição é uma das formas mais gravosas de violência masculina contra as mulheres, raparigas e crianças, amplamente tolerada pela sociedade.
  • O conhecimento da prostituição, enquanto fenómeno e problema sociais, implica o recurso a uma visão holística, para compreensão da realidade e consequente intervenção.
  • O conhecimento aprofundado acerca do sistema de prostituição pode constituir uma base para o desenvolvimento de uma proposta de estratégia nacional de apoio à saída das pessoas do sistema da prostituição.

O sistema de prostituição, em que entroncam fenómenos como o tráfico humano e a pornografia, constitui um problema social e uma negação de referenciais de direitos humanos fundamentais e legalmente ratificados.

A partir destes pressupostos, definiu-se como objetivo geral deste estudo:

  • O conhecimento do sistema de prostituição em Lisboa, na dupla vertente de intervenientes, em particular das mulheres, e da organização do sistema.

Como objetivos específicos, identificaram-se:

  • Conhecimento das histórias de vida e trajetórias de mulheres prostituídas.
  • Conhecimento indireto dos compradores de sexo.
  • Conhecimento da organização e dinâmicas do sistema de prostituição em Lisboa.
  • Conhecimento das dinâmicas de interação, das representações sociais, das respostas e medidas existentes para esta população e sua adequação e acessibilidade e sugestões de estratégias a implementar, por parte de profissionais de diferentes áreas que lidam diretamente com as mulheres prostituídas.
  • Análise de estereótipos e representações sociais acerca da prostituição, veiculados pelos títulos de notícias sobre prostituição nos anos 2019/2020 nos jornais diários nacionais, bem como nos anúncios publicados em jornais.
  • Elaboração de recomendações para uma estratégia com programas de saída do sistema de prostituição.

Para prossecução deste conjunto de objetivos, recorre-se a um suporte teórico, cuja robustez permita a realização de análises críticas feministas, reflexões e propostas de ação, designadamente, nos seguintes domínios:

  • Relação entre desigualdades entre mulheres e homens e sistema de prostituição;
  • Respostas político-legais (regimes legais) e evolução em Portugal;
  • Referenciais de Direitos Humanos;
  • A realidade do sistema de prostituição: atores e dinâmicas;
  • Trajetórias de vida das mulheres prostituídas: violência, abuso e disfuncionalidades familiares; vulnerabilidades socioeconómicas; saúde, risco e dependências; questões étnico-raciais e etária;
  • Representações sociais, estereótipos e estigmatização relativamente à prostituição e às mulheres prostituídas;
  • A saída do sistema de prostituição: necessidades e respostas.

Finalmente, no que respeita à metodologia, o reconhecimento de que esta investigação aborda um tema de natureza complexa conduziu à opção por uma abordagem exclusivamente de natureza qualitativa e intensiva, que permita a compreensão ampla e aprofundada do sistema de prostituição em três planos:

  1. Conhecimento dos sujeitos intervenientes;
  2. Conhecimento das intervenções profissionais neste domínio;
  3. Conhecimento das representações sociais e estereótipos veiculados pelos meios de comunicação social, que são determinantes para a formação e/ou reprodução de juízos valorativos (preconceitos) sobre o tema, na sociedade portuguesa.

Para obtenção de informação que permita estes três níveis de conhecimento, recorre-se às seguintes técnicas:

  • Pesquisa documental sobre as temáticas relacionadas com o tema da investigação (livros ou artigos científicos e relatórios institucionais ou estudos não publicados, mas validados);
  • Entrevistas de história de vida e de história familiar a mulheres prostituídas (“quem são” estas mulheres, quais as suas trajetórias biográficas e no sistema de prostituição, quais os constrangimentos que enfrentam nos seus quotidianos);
  • Entrevistas semiestruturadas a mulheres prostituídas (conhecimento indireto do comprador de sexo, da organização do sistema de prostituição e das suas representações, expectativas e aspirações pessoais, e das medidas que consideram dever ser adotadas);
  • Entrevistas semiestruturadas com profissionais que lidam diretamente com mulheres prostituídas – estatuto de informadores/as qualificados/as (conhecimento dos contextos, formas, tipos e dinâmicas de interação das representações sociais acerca da prostituição, conhecimento indireto dos compradores de sexo, a avaliação subjetiva das medidas e respostas de apoio e sugestões de estratégias a implementar neste domínio);
  • Análise de conteúdo de anúncios de jornal de publicidade (conhecimento da organização do sistema de prostituição e tipificação da “oferta” e da “procura”);
  • Análise de conteúdo a títulos de imprensa que versem a prostituição (análise da sua influência na construção, reforço e propagação dos mitos, visões estereotipadas e representações sociais acerca da prostituição).

O reconhecimento de que esta investigação aborda um tema de natureza complexa conduziu à opção por uma abordagem exclusivamente de natureza qualitativa e intensiva, que permita a compreensão ampla e aprofundada do sistema de prostituição.

Devemos refletir como [é que a] vulnerabilidade se cruza com a desejabilidade sexual masculina e a tolerância da sociedade a essa mesma desejabilidade (mulheres não compram sexo e homens não vendem sexo a mulheres); homens em situação de pobreza não estão no sistema da prostituição a vender sexo (estão como proxenetas).

Preponderância da insuficiência económica para a permanência no sistema de prostituição.

Conclusão

Síntese dos resultados preliminares

Os resultados preliminares deste estudo acerca das mulheres no sistema de prostituição em Lisboa, evidenciam:

  • O predomínio de mulheres na prostituição e de homens compradores de sexo.
  • A vulnerabilidade socioeconómica das mulheres e a influência desta vulnerabilidade na entrada e permanência no sistema de prostituição. Devemos, porém, refletir como esta vulnerabilidade se cruza com a desejabilidade sexual masculina e a tolerância da sociedade a essa mesma desejabilidade (mulheres não compram sexo e homens não vendem sexo a mulheres); homens em situação de pobreza não estão no sistema da prostituição a vender sexo (estão como proxenetas).
  • A preponderância da insuficiência económica para a permanência no sistema de prostituição.
  • A relevância das questões da baixa autoestima e autoconceito, tanto para a entrada no sistema de prostituição, quanto para a dificuldade de saída do mesmo.
  • A prevalência de contextos familiares violentos (com vitimação ou exposição a diferentes tipos de violência).
  • A prevalência de contextos comunitários socioeconomicamente débeis e de ambientes de exclusão social.
  • A reduzida qualificação escolar (herdada da família de origem) e profissional e o predomínio de percursos de trabalho marcados pela indiferenciação, precariedade e desemprego.
  • A prevalência de relações afetivas marcadas pela dependência e pela toxicidade.
  • A consciência do estigma social que impende sobre a prostituição.
  • A identificação de necessidades prioritárias: habitação, apoio económico, tratamento de dependências e inserção no mercado de emprego.
  • A agudização das carências em contexto de pandemia (e a entrada/reentrada de mulheres no sistema) e as assimetrias nas respostas ao nível da área metropolitana de Lisboa.
  • A perceção de insuficiência de apoios.
  • A pouca articulação entre as respostas sociais e as instituições de apoio.
  • O desconhecimento e/ou falta de opinião acerca de enquadramentos legais.
  • A impossibilidade de identificação de um comprador-tipo.
  • A ligação entre o recurso à prostituição e o consumo de pornografia.
  • A existência de diferentes fatores diferenciadores de valorização das mulheres, associados a estereótipos como a nacionalidade e/ou etnia ou as características físicas ou psicossociais.
  • A diversidade de contextos de prostituição (bares, apartamentos, rua…).
  • O reconhecimento de violência associada ao sistema de prostituição: violência dos compradores de sexo, dos proxenetas, das entidades públicas, da sociedade global e da própria atividade prostitucional.
  • A referência a formas de aliciamento para prostituição internacional.

Aposta na qualificação escolar de jovens, em particular de raparigas oriundas de contextos de maior vulnerabilidade socioeconómica, com ligação ao emprego (cursos profissionalizantes promotores da igualdade de oportunidades e da igualdade entre raparigas e rapazes)

Recomendações preliminares

A partir destas dimensões podem tecer-se algumas recomendações preliminares, para a definição de políticas públicas neste domínio, que apresentaremos, de seguida, agrupando-as em cinco dimensões, também elas identificadas, ainda, de forma exploratória:

Prevenção

  • A aposta na qualificação escolar de jovens, em particular de raparigas oriundas de contextos de maior vulnerabilidade socioeconómica, com ligação ao emprego (cursos profissionalizantes promotores da igualdade de oportunidades e da igualdade entre raparigas e rapazes);
  • O abandono precoce da escola das mulheres está associado à desvalorização da qualificação escolar por parte dos contextos socioeconómicos e familiares de origem bem como a contextos familiares marcados pela violência, sem que as escolas tenham sido ativas na prevenção desse abandono escolar. Será determinante o desenvolvimento de protocolos de atuação nas escolas para a sinalização e apoio a crianças e jovens que vivam em contextos de violência familiar, mas que se pode estender à violência masculina (violência no namoro, divulgação e partilha de imagens ou conteúdos íntimos e/ou de cariz sexual…).

Conscientização

  • A realização de ações, nas escolas, apresentando as histórias de vida das mulheres na prostituição e mostrando como a prostituição não empodera, não enriquece, nem transforma os contextos de vulnerabilidade de partida, antes, pelo contrário, acentua essa mesma vulnerabilidade;
  • O desenvolvimento de ações e campanhas de sensibilização, concebidas a partir dessas histórias das mulheres, que desmistifiquem a imagem de glamour associada ao sistema de prostituição;
  • A disseminação de campanhas de conscientização dirigidas aos homens – e à sociedade em geral – sobre a compra de sexo;
  • A implementação de campanhas de sensibilização da sociedade, e muito concretamente das pessoas mais jovens, para a promoção de uma sexualidade livre, baseada no consentimento, igualdade e prazer mútuos.
  • O desenvolvimento de campanhas de educação e sensibilização para desconstrução da validação social da pornografia.
  • O desenvolvimento de campanhas de sensibilização da sociedade para a questão da prostituição e a desconstrução dos estigmas potenciadores de exclusão social.

Apoios e serviços

  • A formação de diferentes agentes sociais com intervenção nesta área.
  • A articulação entre entidades públicas (centrais e locais) e organizações não governamentais, em particular associações de mulheres pelo conhecimento, reflexão crítica e capacidade de agir com e para as mulheres.
  • A maior articulação entre as instituições com intervenção direta nesta área.
  • A identificação das situações de exploração e/ou tráfico e a atuação imediata de proteção das vítimas.
  • O reconhecimento da condição de sobreviventes para as mulheres exploradas, obrigadas a prostituir-se e/ou traficadas, com os consequentes apoios psicossociais, legais, económicos e de acolhimento.

Responsabilização

  • A criminalização do proxenetismo (lenocínio) e do tráfico de seres humanos;
  • A maior intervenção dos serviços, em particular das forças de segurança e dos agentes judiciais, na identificação das situações bem como na condenação efetiva de quem comete os crimes acima referidos.

Valorização das mulheres

  • A criação, com a participação de mulheres que estão ou estiveram no sistema de prostituição, de uma estratégia nacional de apoio à saída do sistema de prostituição com o desenvolvimento de respostas ao nível:
    • do acesso à habitação;
    • da qualificação e treinamento profissional;
    • da inserção no mercado de trabalho;
    • do apoio na saúde (mental, física e de tratamento de dependências);
    • do acompanhamento psicossocial continuado (preventivo de reentradas no sistema), quer do apoio individualizado quer da organização de grupos de reflexão.
  • A promoção da participação ativa das pessoas em situação de prostituição nas decisões acerca do enquadramento legal nesta matéria.

Olha, é algo que eu jamais pensei fazer. Sabe aquela coisa de ser puta, que horror! Pois era o que eu pensava e, se calhar, ainda penso. Por isso não gosto de pensar em mim desse jeito. Eu sei o que faço, sei o que sou aos olhos dos outros, sei que as pessoas me olham mal, me veem como puta, porque era isso que eu pensava também, mas eu sinto que há mais (…) sei que isto não vai ser a minha vida. Não pode ser a minha vida, porque isso seria ruim demais.”

“Ana” (26 anos)

Equipa de Investigação

Maria José da Silveira Núncio (Docente no ISCSP ULisboa e Doutorada em Sociologia) – coordenação
Carla Isabel Cruz (Docente no ISCSP ULisboa e Doutorada em Ciências da Comunicação)
Natália Koyama (Licenciada em Jornalismo e Mestranda em Política Social)
Rita Sarmento (Licenciada e Pós-Graduada em Criminologia)