A formação para jovens abolicionistas do sistema de prostituição promovida no âmbito do projeto “EXIT – Direitos Humanos das mulheres a não serem prostituídas”, em julho de 2019, foi uma das últimas coisas que fiz antes de vir viver para São Tomé e Príncipe (STP), onde estou a trabalhar no projeto “Sebê Nón – Educar para a Igualdade”, um projeto de intervenção social de combate ao abandono escolar de raparigas e de empoderamento das raparigas na ilha de São Tomé, ao abrigo da Organização Não-Governamental (ONG) We Are Changing Together (WACT).
Para mim a formação foi bastante útil e enriquecedora: eu já tinha uma posição favorável à abolição do sistema de prostituição, mas ainda não me sentia suficientemente capacitada e munida de conhecimentos e dados reais para defender esta minha posição. Depois da formação isso mudou.
Com o compromisso de realizar pelo menos uma ação de conscientização sobre o sistema de prostituição (a sua realidade e o seu impacto na (des)igualdade entre mulheres e homens, raparigas e rapazes) fiquei desde logo a pensar de que forma poderia, através da ação, trazer e abordar de forma mais visível a problemática da prostituição na realidade santomense, fosse no âmbito do projeto que vim implementar ou, fora dele, no quadro mais alargado dos objetivos e das iniciativas da sociedade civil nacional.
Não integrei propriamente a questão da prostituição no âmbito direto de atuação do projeto no qual me encontro a trabalhar em São Tomé, mas procurei sim abordá-la junto da sociedade civil santomense por aquela ser provavelmente, por diversas razões, (mais) uma potencial causa e/ou uma consequência do abandono escolar de raparigas santomenses – o foco central de atuação do projeto.
O que mais ouvi sempre que procurei falar sobre prostituição – “Existe?” “De que modo é encarada pelo Governo, pela sociedade civil, pela população em geral?” “Existem medidas a nível do Estado para abordá-la?” – foi a frase “a prostituição é uma coisa que toda a gente sabe que existe, mas de que ninguém fala”.
O que mais encontrei foi a falta de dados estatísticos e de estudos sobre o tema, assim como poucas iniciativas, que mesmo essas ficaram a meio na sua implementação: porque terminaram os recursos financeiros e/ou abordaram a questão da prostituição apenas numa lógica médico-sanitária, nomeadamente de combate às Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST’s) através da distribuição de métodos contracetivos às pessoas em situação de prostituição e da monitorização do estado de saúde das mesmas, e nunca numa lógica de criação de alternativas que lhes permitissem sair dessa realidade por ser atentatória da sua dignidade enquanto mulheres, enquanto seres humanos.
Posto isto, a Associação Mama Catxina (MMC), uma associação santomense de mulheres criada em 2018 para dar resposta a vários problemas que as mulheres santomenses enfrentam, aceitou apoiar em parceria a realização da ação de conscientização com o objetivo de perceber o nível de conhecimento e as opiniões relativas à realidade da prostituição em STP. Sendo um tema pouco falado a nível nacional, a ação realizada no dia 7 de dezembro de 2019, na Cidade de São Tomé, serviu então para realizar uma abordagem exploratória sobre o tema.
Antes disso tivemos a oportunidade de ir ao programa “Manhã na TVS”, o programa matinal da Televisão Nacional Santomense (TVS), o qual foi dedicado à divulgação da ação e a um pequeno debate.
A nível mundial, segundo o relatório de 2018 da Agência das Nações Unidas Contra a Droga e Crime (UNODC, sigla em inglês), a grande maioria das vítimas de tráfico humano são mulheres e raparigas e a grande maioria das vítimas detetadas para fins de exploração sexual são também mulheres.
A nível regional, existem diretrizes para abordar estas questões. No âmbito da União Africana (UA), de que STP é um Estado-Membro, o Plano de Ação da Política de Migração para África 2018-2027 refere nos seus objetivos estratégicos a necessidade e importância de proteger especialmente as mulheres e as crianças do tráfico humano de modo a gerir os fluxos migratórios no continente.
O Plano de Ação de Ouagadougou de 2006 para Combater o Tráfico de Seres Humanos, especialmente as mulheres e as crianças, fornece aos Estados um guião abrangente focalizando o tráfico humano e o desenvolvimento de estratégias de combate ao mesmo, destacando num dos seus eixos de ação a necessidade de dar atenção ao aumento do turismo sexual no continente e a outras formas de exploração sexual e abuso de mulheres e crianças. Ora, a Iniciativa da Comissão da União africana Contra o Tráfico (UA COMMIT) procurou elevar a consciência em relação ao Plano de Ação de Ouagadougou e promover a sua implementação.
Existem ainda outros documentos regionais ratificados por STP que referem a necessidade de abordar estas questões:
- a Carta Africana dos Direitos Humanos e do Bem-Estar da Criança, na qual o artigo 27º é relativo à proteção da criança contra todas as formas de exploração sexual, incluindo a prostituição;
- o Protocolo de Maputo, Protocolo à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, sobre os Direitos das Mulheres em África, no qual a alínea g) do artigo 4º refere a prevenção do tráfico de mulheres e a proteção das mulheres que estão mais expostas a isso;
- a Carta Africana da Juventude, na qual a alínea l) do artigo 23º refere a necessidade de adotar e reforçar leis que protejam as raparigas contra todas as formas de violência, incluindo a exploração sexual, o tráfico, a prostituição e a pornografia como tal;
- a Agenda 2063, que refere aspirações de eliminar, até 2063, todas as formas de violência e discriminação contra raparigas e mulheres e de libertar o continente da violência baseada no género e do tráfico de seres humanos, ainda que não refira nem especifique a questão da prostituição.
O Programa das Nações Unidas para o combate à SIDA (UNAIDS, sigla em inglês), que considera as pessoas em situação de prostituição como “profissionais do sexo”, o que vai contra a linguagem acordada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas e, claro, contra a perspetiva abolicionista do sistema de prostituição que as considera vítimas de exploração sexual, regista a existência de 89 pessoas em situação de prostituição na Cidade de São Tomé, a capital do país.
A Constituição nacional expressa os princípios da Igualdade no artigo 15º e o Código Penal de 2012 contempla nos seus artigos 172º e 173º a criminalização do tráfico de pessoas para a prática de prostituição em país estrangeiro e da prática de lenocínio em território nacional, respetivamente, com pena de prisão que pode ir de 1 a 8 anos.
Apesar disso, e dada a falta de dados registados, sistematizados e analisados e de projetos de investigação acerca do sistema de prostituição em STP, observar o trabalho feito noutros países africanos pode ser útil para o conhecimento e a replicação contextualizada de modelos de atuação e de eventuais boas práticas para uma futura abordagem à problemática no país.
O Consórcio de Mulheres da Nigéria (Women Consortium of Nigeria – WOCON, em inglês) é uma ONG criada na Nigéria, em 1995, “committed to the enforcement of Women and children’s rights and the attainment of equality, development and peace”, com Estatuto Consultivo Especial nas Nações Unidas (ONU).
No que diz respeito à prostituição, a WOCON refere o combate à prostituição na Nigéria no âmbito de duas das suas áreas focais de atuação:
- Violência contra as mulheres – “Hundreds of Nigerian women and girls are trafficked each year into forcible prostitution. They are made to endure slave-like conditions in foreign countries, notably Italy, and the Middle East”;
- Exploração sexual de crianças – “The prevention of child exploitation has become the cornerstone of WOCON’s support in the region to combat sexual exploitation. It aims to help families and communities become the first line of protection for children. Prevention programmes are designed to educate families and the girls about the dangers of trafficking and prostitution and to provide girls with life skills and job training”.
Fundada em 2000, a associação Free The Slaves (FTS) é considerada pioneira no movimento abolicionista moderno em África, na América do Sul e na Ásia.
A FTS desenvolveu um plano global de mudança para informar governos, instituições internacionais, comunidades religiosas, empresas e a população em geral sobre o que todos estes atores podem fazer para acabar com as várias formas de escravatura de mulheres e crianças, nas quais incluem a prostituição, e implementa uma community-based strategy em países selecionados – em África falamos do Congo, do Gana e do Senegal – de forma a demonstrar que esse modelo é escalável e replicável.
Na realidade santomense, com base na informação que consegui obter, a perceção que tenho é a de que o sistema de prostituição é pouco conhecido, assim como a sua estrutura: existem pessoas a prostituir-se individualmente, existem redes pouco percetíveis e existem alguns locais reconhecidos por serem onde podem ser observadas práticas de prostituição. A prostituição continua a ser esse “problema que toda a gente sabe que existe, mas de que ninguém fala”.
Dada a característica geográfica de insularidade deste país composto por duas ilhas – a ilha de São Tomé e a ilha do Príncipe – localizadas no Golfo da Guiné, é muito provável que a realidade da prostituição se revista de uma dimensão transnacional de tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual pouco significativa, ou até mesmo inexistente. Ao contrário de outros países africanos que partilham fronteiras terrestres entre si e isso potencia, pela facilidade de circulação e mobilidade clandestinas, o tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual como a prostituição.
A minha experiência com a ação de conscientização foi bastante desafiante a todos os níveis: na busca de informações e dados sobre o tema, na abordagem do tema junto das pessoas – individuais e coletivas – que apoiassem a sua realização e que acreditassem na importância e necessidade de abordar esta questão e na colocação das questões relacionadas com a prostituição no decorrer da ação junto das/os participantes.
Após a ida à televisão nacional e após a realização da ação, pude perceber que a prostituição é de facto um problema que toda a gente sabe que existe, mas de que ninguém fala, ou pelo menos de que ninguém fala de forma a que surja uma perspetiva orientadora para uma potencial realização de ações de abordagem ao mesmo.
O que é necessário? O que falta? Uma abordagem adequada ao contexto, que pode, portanto, começar por procurar investigar e compreender melhor a existência e o funcionamento de um sistema de prostituição em STP com enfoque na natureza específica do mesmo no país.
Desenhar e implementar essa abordagem de modo a que seja uma abordagem focalizada, integrada e sistemática: a abordagem feita até ao momento de que tive conhecimento foi feita na ótica do combate às DST’s, sem uma abordagem na ótica da promoção e proteção dos Direitos Humanos das Raparigas e Mulheres.
No âmbito do tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual – no caso, prostituição e turismo sexual – existe uma hierarquia sexual clara: a maioria das pessoas compradoras de sexo são homens e a maioria das pessoas prostituídas são mulheres.
Como podemos mudar esta realidade? Através da educação, da pressão política e da advocacia por parte da sociedade civil organizada e da sociedade em geral. Através da realização de estudos com base em estatísticas desagregadas por sexo, e de projetos de investigação e de aquisição de conhecimento mais profundo desta problemática. Através da replicação de boas práticas regionais, como as referidas acimas. Através de uma abordagem contextualizada em que são tidos em consideração todos os atores deste sistema – compradores de sexo, proxenetas/chulos, pessoas em situação de prostituição, governos e sociedade – que, acima de tudo, reflete um atentado à dignidade das raparigas e mulheres e é (mais) um fator de perpetuação da desigualdade entre raparigas e rapazes, mulheres e homens.