Sempre me considerei feminista. Era um caminho que fazia com naturalidade e sem demasiadas dificuldades, como que descendo de bicicleta uma rua alcatroada, sem ter de tocar nos pedais. Assobiava, de vento na cara, até ter chegado o momento fulcral na minha consciência do que é ser mulher: a entrada numa rua de paralelos, da qual a única saída era uma subida bem íngreme. Pensar a prostituição é isso mesmo, abandonar as facilidades que o mundo nos tenta mostrar, compreender a violência contra as mulheres e saber que a luta feminista é dura e difícil de aceitar. Pensar a fundo o que significa existir prostituição é ver pelos olhos do patriarcado o que é ser mulher e isso dói. Dói e deixa-nos revoltadas. Mostra-nos que o feminismo não é sobre identidade e realizações pessoais, mas sobre opressão, desrespeito e violência. A nossa vida não volta a ser a mesma e ainda bem.
Compreendo porque é que ouvir que a prostituição deve ser regulamentada parece, num primeiro impacto, fazer sentido. Mas a minha experiência tem-me demonstrado que uma explicação até rápida sobre o que significa abolicionismo e sobre a realidade das mulheres prostituídas dificilmente não leva a uma abertura no pensamento, que dá espaço a uma mudança de posição. Ontem, uma nova colega juntou-se à minha equipa de trabalho. Como chegamos a este tema já não sei, mas vou parafrasear o melhor possível o nosso diálogo, querendo fazer notar o quão breve foi:
Ela: A prostituição deve ser legalizada, estas mulheres sofrem tantas dificuldades, então nestes tempos de pandemia!
Eu: Sabias que em Portugal não é crime? Nem as mulheres podem ser criminalizadas, nem os seus compradores. Com a regulamentação o que se está a legalizar é o lenocínio. Bem, chamemos pelos nomes: os chulos.
Ela: A sério? Não, isso não! Gostava de saber mais sobre este tema, eu e uns amigos conversamos sobre o assunto há uns tempos e ficamos de nos informar mais sobre isto para o podermos discutir.
Eu: Gosto de começar por explicar que o abolicionismo e o proibicionismo são diferentes. O abolicionismo é pelas mulheres, sem julgamentos à mistura, ouvindo-as e lutando por elas. Por elas e por nós: se uma tem um preço, todas temos… Não discuto sequer o proibicionismo, nem nada que condene mulheres com base em valores morais.
Ela: Concordo contigo. É perigoso todas termos um preço. Mas as mulheres não estão mais protegidas com a legalização?
Eu: Se regulamentarmos, o próprio Estado torna-se proxeneta. Passa a ter interesse no lucro que vem da prostituição. Como garantimos políticas públicas de apoio à saída assim? Além de que a idade média de entrada na prostituição são 14 anos.
Ela: 14?! Mas isso não é possível legalizar! Isso é pedofilia! 14?
Eu: Sim. Além de que o tráfico sexual continua a existir nos países em que a prostituição foi legalizada! Porque é que isso acontece se é um trabalho como qualquer outro?
Ela: Que protecção temos, à porta fechada, com um homem?
Eu. Exacto. O que é que diz sobre a nossa sociedade que a maioria, quase totalidade, das pessoas prostituídas sejam mulheres e que a maioria dos compradores, quase totalidade, sejam homens? Porque é que não somos nós, mulheres, a procurar este suposto “direito ao sexo”? Porque é que são os homens que nos querem comprar, que acham que podem comprar mulheres, e não ao contrário? Terá isto a ver com direitos ou com uma profunda misoginia? Não é a profissão mais antiga do mundo. É a forma de exploração da mulher mais antiga do mundo.
Fomos interrompidas pelo trabalho que tínhamos a fazer, mas a conversa não ficou por aí. Nas suas respostas e expressões, vi a sua visão do tema a abanar e saltar, enquanto as rodas passavam pelos paralelos, em direcção à subida íngreme.
Enviei a esta companheira o site do EXIT, como a mim me enviou outra mulher, a quem mulheres que foram às formações promovidas por este projecto fizeram chegar. Como devemos valorizar as redes de mulheres que temos na nossa vida. Agradeço ao Exit o trabalho que fizeram, que não me chegou directamente, como disse, mas já como consequência duma cadeia de activistas que se comprometeram a continuar o trabalho através de acções multiplicadoras.
Sou, agora sim, uma feminista e, como tal, abolicionista. A minha vida é orientada para mulheres e não pararei de falar sobre este tema, em qualquer lugar, até que todas sejamos livres. E isso só é possível com a abolição da prostituição.