Aline Rossi

Aline Rossi é uma ativista feminista brasileira e membro da Assembleia Feminista de Lisboa.

Criadora do blog Feminismo Com Classe, autora e tradutora na revista digital QG Feminista (Brasil).

Comunicação na sessão Fazendo a mudança

Só para contextualizar ligeiramente: A primeira vez que me deparei com a questão da prostituição foi em 2011, aqui em Portugal. Na altura, fui a um evento sobre “Trabalho Sexual” em que foi exibido um minidocumentário português com debate depois.

Falaram da falta de direito das pessoas em prostituição e como a falta de legislação as deixava vulneráveis, daí ser importantíssimo regulamentar o quanto antes. Eu saí daquela sala convencidíssima que era a pauta mais urgente da atualidade regulamentar a prostituição. Porque tinha gente que queria se prostituir. Porque as pessoas têm o direito de se prostituir. Eu voltei para o Brasil com essa certeza.

Eu tinha 19 anos. Era estudante. Sem qualquer formação política ou embasamento teórico sólido seja em teoria feminista ou qualquer outro campo de estudos sociais para refletir sobre o que eu tinha ouvido ali. Quem era eu para negar direitos às pessoas que queriam se prostituir? Para me opor à sua liberdade individual?

Mas era fácil imaginar tudo isso em Portugal, especialmente na condição que eu estava. Na faculdade, não precisava trabalhar para pagar minhas contas, era uma bolsa mensal do Estado brasileiro que dava para o meu sustento muito bem. Era fácil idealizar a prostituição.

Mas aí eu voltei para o Brasil. E é muito difícil idealizar no Brasil, especialmente se você não é de uma família rica, como eu. Lá, participei de um projeto para alfabetizar pessoas em situação de rua. E a maioria das pessoas em situação de rua, analfabetas, que pude conhecer e ajudar nesse programa eram mulheres prostituídas. Era fácil perceber que isso andava junto 100% das vezes em se tratar de mulheres: a falta de habitação e emprego, simultaneamente, significava prostituição.

Nenhuma delas falavam da prostituição como trabalho nem queria estar na prostituição. Aquelas que estavam a menos tempo nas ruas falavam daquilo como uma “situação temporária”, algo que elas “tinham de fazer” naquele momento para conseguir algo melhor depois. Elas queriam sair. Elas não queriam ser conhecidas como prostitutas, elas não queriam reivindicar esse nome ou ser chamadas de “trabalhadoras do sexo”. Elas queriam sair das ruas. Elas queriam ganhar bem o suficiente para subsistir, existir, viver, se manter – como todo ser humano supostamente tem direito, certo? Moradia, saúde, respeito, vida livre de violências, etc.

Ali, eu convivi com cerca de 200 mulheres diferentes. Diferentes idades, backgrounds, crenças. Elas nunca tinham sonhado em ser prostitutas enquanto crianças. E, claro, dispensa dizer que 98% das pessoas que atendi eram mulheres, os outros 2% eram travestis. Então meu olhar mudou. Eu comecei a pesquisar mais sobre os países que regulamentaram a prostituição e os resultados não eram bonitos nem positivos. Em muitos desses países, até os sindicatos das mulheres prostituídas queria revogar algumas mudanças.

Um dos textos que me abriu os olhos foi um relato da Sabrinna Valisce publicado na BBC. Não deu mais para “idealizar” depois disso.

Mas me dizem: Portugal não é Brasil. Aqui a prostituição de rua quase não se vê. Há mulheres licenciadas a se prostituir.

É verdade, e espero que o objetivo não seja “ser o Brasil”. Mas não dá para ignorar que uma parte massiva das pessoas prostituídas em Portugal é imigrante. Há muitas brasileiras que vêm, traficadas ou por conta própria, se prostituir com a promessa de uma vida melhor. E não só. Há romenas e africanas também. Sempre mulheres que vêm de países devastados pela pobreza e o colonialismo. Fugir da pobreza não pode ser encarado como um tipo de escolha – quão baixos estão os nossos níveis de humanidade e dignidade? Não existe um padrão de humanidade para as mulheres em Portugal e outro no Brasil e outro na Índia. Se algo pode ser feito às mulheres no Brasil, pode ser feito às mulheres em Portugal ou na Índia. Porque somos mulheres, esse grupo a quem se faz estas coisas. Por isso, ou a política é internacional, ou é insuficiente.

Quando voltei para Portugal, em 2016, o discurso tinha mudado. Foi de “precisamos assegurar direitos às pessoas prostituídas” para “sexo é um direito humano”. O foco muda da pessoa prostituída, que antes precisava de direitos, para o comprador, que tem direito de ter sexo por todos os meios possíveis. E qualquer pessoa que discordasse era uma “putafóbica”, alguém que odeia mulheres prostituídas e tem sangue nas mãos.

Mas um direito implica um dever. Dizer que alguém tem direito a sexo implica que outro alguém deve sexo a essa pessoa. E os dados são muito claros sobre o recorte sexual e de gênero aqui: mulheres são maioria em prostituição e homens são maioria dos prostituídores. É uma questão de opressão sexual. Mulheres não devem sexo a ninguém. E se nós entendemos isto dessa forma e reconhecemos isso legalmente: que mulheres devem sexo e que homens podem comprar mulheres para sexo, porque sexo é um direito, então efetivamente a situação está pior do que pensávamos. Era exatamente essa a ideia há poucos anos atrás, quando não podia se falar em “estupro conjugal”, porque sexo era um direito que a mulher devia ao homem pelo casamento. E casamento era como as mulheres podiam ter casa e sustento. Aqui é igual, mas é dinheiro.

Eu já não sou mais aquela estudante. Trabalho e tenho um filho pequeno que tem necessidades específicas. Tenho uma noção muito mais realista do que significa não ter dinheiro e não ter casa para morar, especialmente por causa dele. E penso nisso muitas vezes, porque a falta de abrigo, de habitação, é uma das pré-condições para a prostituição, principalmente para mães. Lisboa, e não só, vive uma crise na habitação e todos os dias eu vejo pessoas sendo despejadas e tenho de encarar a realidade de que o dia que eu não tiver dinheiro para pagar a minha renda, serei eu e meu filho. E sem casa, eu, sendo mulher numa sociedade que naturaliza o ato de comprar e vender mulheres para uso sexual, estou muito mais perto da prostituição que todas as pessoas acadêmicas que defendem a legalização da demanda como liberdade individual enquanto recebem bolsas e passeiam com os amigos, sem sequer ter filhos para criar. Eu penso mesmo muito nisso.

Por isso, e por entender que nós não chegamos a esse ponto por acaso, que existe um desenvolvimento da história que só podia culminar nisso – um desenvolvimento que envolve mulheres serem legalmente propriedade dos homens, legalmente proibidas de trabalhar, estudar, receber herança, abrirem contas bancárias em seu nome, etc etc etc – eu acho que uma política séria sobre a prostituição tem de ter um plano de fundo, uma premissa e um horizonte. O plano de fundo é este: a construção histórica da prostituição, o entendimento de que a organização da sociedade empurrou as mulheres para a prostituição por falta de alternativas, não por escolha; a premissa é que é errado pagar para usar outra pessoa em benefício sexual; e o horizonte é uma sociedade livre de prostituição, em que nenhuma mulher precise ou considere vender seu corpo para uso sexual em troca de dinheiro para existir e sobreviver e sustentar seus filhos.

Isso só pode ser conseguido através de uma política que ajude mulheres a saírem dessa situação. Que entenda que não é possível “sair quando bem entender”, porque é preciso ter dinheiro para pagar a renda, é preciso se alimentar. Então precisamos de abrigo, precisamos de investimento público e de uma política que atue na prevenção, reparação e educação. Que criminalize a demanda. Que diga com todas as letras que ninguém tem o direito de pagar para abusar de alguém, ninguém pode comprar outra pessoa, ninguém pode pagar para usar o corpo de outra pessoa como objeto sexual. Isso é uma política séria, precisa ser feita com seriedade para produzir os efeitos. Uma política pública que não criminalize nem puna mulheres pela situação de vulnerabilidade em que se encontram, mas que puna e criminalize homens que usam poder econômico e social para abusar de uma pessoa vulnerável, seja comprando ou vendendo. Independente da raça e da classe econômica deste homem, ele deverá ser responsabilizado por isso, para que haja uma alavanca de consciência na sociedade de que ninguém pode comprar ou vender outra pessoa e que sexo não é um direito ou um dever.

Eu sou pelo modelo nórdico e que seja internacionalista, caso contrário os traficantes sexuais apenas mudarão o destino e o foco e as mulheres continuarão em risco.

Toda geração de feministas que lutou deixou algo para as gerações futuras. A geração da minha mãe deixou-me o direito de divorciar, de trabalhar no Estado, de votar, de denunciar e processar o estupro. Eu gostaria que a minha geração deixasse esse legado para a próxima: o aborto legal e seguro e políticas sérias para que nenhuma mulher possa mais ser comprada ou vendida em prostituição. O meu filho vai crescer sabendo que ele nunca, nunca, em condição nenhuma e em nenhum universo, tem direito de pagar para usar o corpo de uma mulher só porque ele quer fazer sexo – e porque ela precisa de dinheiro para abrigo e comida.

4 comentários em “Aline Rossi”

  1. Excelente texto. É engraçado como somos condicionados a acreditar que o errado é certo, e que o corpo da mulher sempre tem um preço. Aos poucos, se nos permitimos, vamos abrindo os olhos pra realidade.

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