Florence Montreynaud

Florence Montreynaud é uma historiadora, linguista e feminista francesa nascida em 1948.

Lançou no dia 8 de março de 1999 o manifesto das Chiennes de Garde (Cadelas de Guarda): “Insultar sexualmente uma mulher em público, é insultar todas as mulheres”, e depois lançou o movimento misto e internacional das Chiennes de Garde, que exige respeito por todas as mulheres.

Em 2000, lançou a rede feminista mista e internacional La Meutre, contra publicidade sexista; em 2001, criou a rede mista e internacional Encore féministes! e em 2011, lançou o movimento masculino internacional Zéromacho: “Os homens dizem NÃO à prostituição!”.

É autora de 18 livros. Os mais recentes, editados em 2018, são: “Le Roi des cons. Quand la langue française fait mal aux femmes”, éditions Le Robert, e também “Zéromacho. Des hommes disent non à la prostitution”, M éditions, Montréal. É também a autora da enciclopédia feminista Le XXe Siècle des femmes (Nathan, 1989; quatro re-edições, a última em 2001) e do livro de memórias feminista: Chaque matin, je me lève pour changer le monde. Du MLF aux Chiennes de garde (éd. Eyrolles, 2014).

Comunicação na sessão Estados-membros da UE – Apresentações sobre práticas internacionais

Desde abril de 2016, a França aplica uma lei contra o sistema da prostituição inspirada no modelo sueco: as pessoas na prostituição já não são consideradas delinquentes, mas vítimas a quem o Estado deve fornecer apoio e estratégias de saída. Vê-se que é mesmo assim pelo próprio título da lei: “Uma lei que tem como objetivo reforçar a luta contra o sistema da prostituição e apoiar pessoas na prostituição”.

A característica revolucionária da lei, a única à qual os jornalistas e o público deram atenção, é a penalização dos clientes por um ato de prostituição. Estes homens – prefiro chamá-los de prostituídores [compradores de sexo], uma vez que “clientes” oferece uma análise meramente económica da prostituição – são arrancados das sombras. É uma lei que torna estes homens responsáveis pelo sistema da prostituição porque sem procura não haveria oferta. Sem estes milhões de homens dispostos a pagar por um ato sexual, não haveria seres humanos traficados para prostituição.

A penalização prevista é leve, uma contravenção. A sanção é uma multa e não uma pena de prisão, como é o caso para crimes. Na prática, as multas que já foram passadas rondam os 350€, logo um valor muito menor ao previsto (1 500€ e 3000€, no caso de repetição).

Além da multa, o agressor deve também seguir uma formação de sensibilização para a luta contra a compra de atos sexuais, que deve relembrar o agressor das realidades da prostituição e das consequências da mercantilização dos corpos. Também prende fazer com que o agressor se torne consciente da sua responsabilidade penal e civil pelos atos.

A penalização dos prostituídores é revolucionária porque é uma reversão total da direção da história, marcada por uma indulgência relativa à violência masculine. Até ao século XIX, a França, como vários outros países, alternava entre a repressão da prostituição e a uma tolerância maior ou menor. Mas com Napoleão, a regulamentação da prostituição atingiu uma organização centralizada nunca vista, que deu origem à designação “Sistema Francês”, que tal como o sistema sueco, abriu portas para um mudança radical.

O sistema francês estabelecido em 1802 organizava a prostituição dentro de “estabelecimentos de tolerância” onde as mulheres eram providenciadas aos homens que pagava. Estas mulheres eram chamadas de “raparigas submissas”, por oposição às “raparigas rebeldes” que trabalhavam nas ruas e eram perseguidas pela polícia. O adjetivo “submissas” é muito revelador, embora originalmente significasse “submissa a um controlo sanitário e administrativo”.

Em troca de algumas concessões para a moralidade social, tal como a interdição de aliciamento através das janelas e, portanto, a obrigação de fechar as janelas que davam para as ruas, originando o termo “casas fechadas”, a França organizou a escravatura sexual de mulheres pobres, forçadas a serem submetidas a controlos médicos, enquanto que os prostituídores não o eram.

Este sistema durou até 1946, quando a lei Marthe Richard aboliu esta regulamentação em França mas não nas colónias francesas, onde a abolição só chegaria em 1960: isto significa que os bordéis militares era legais e os soldados das guerras coloniais da Indochina e da Argélia tinham direito a eles.

Porquê 1960? É o ano em que a França retifica a convenção abolicionista de 1949.

De 1960 para a frente, a França é oficialmente abolicionista: a prostituição é livre, apenas o proxenetismo é reprimido. Na realidade, depende do comportamento dos polícias locais para com as pessoas na prostituição, o tipo de ordens que lhes são dadas e o tipo de poder que sentem ter.

O ano de 2002 é crucial. A lei Sarkozy cria o crime de “aliciamento passivo”, uma contradição de termos. As pessoas que aliciam nas ruas são sujeitas a aprisionamento e algumas mulheres vão de facto para a prisão. Esta lei repressiva é um ponto de viragem em França. No dia 10 de Dezembro de 2002, em resposta a uma chamada do Coletivo Nacional para os Direitos das Mulheres, milhares de ativistas manifestam-se em Paris. O evento é histórico: é a primeira vez no mundo que tantas feministas se manifestam contra a prostituição; outro elemento sem precedentes é que os homens são cerca de um quarto dos manifestantes.

Desde 2002, continuámos a longa marcha para alcançar uma lei segundo o modelo sueco até ao sucesso imprevisível de 2016. Durante todos esses anos, e para algumas/uns ativistas muito antes de 2002, agíamos sem qualquer esperança de algum dia ver essa lei ser passada – principalmente porque a sociedade francesa era complacente com a prostituição, considerada um mal necessário. Não é chamada “a mais velha profissão do mundo” (o que está errado, a mais velha profissão feminina do mundo é a de parteira). Os preconceitos acerca de “necessidades masculinas” estão firmemente enraizados, tal como as justificações terríveis como “impede os homens de violar” e a falsa compaixão pelas mulheres na prostituição “que estariam muito mais quentes dentro de um bordel”. Há outra particularidade francesa, desconhecida nos países nórdicos: a imagem representada em filmes e canções sobre a reputação sedutora das mulheres francesas, que permite uma visão alegre e leve da prostituição e está associada ao prazer masculino com um pouco de transgressão contra a hipocrisia pequeno-burguesa.

É esta imagem transgressiva que ainda é cultivada hoje em dia por homens famosos, intelectuais, artistas, quando se gabam de comprar sexo, como prova do seu não-conformismo. Acrescentam o poder da sua celebridade a um lobby virulento de proxenetas, cujos argumentos vão desde ataques ad hominem contra as abolicionistas, classificadas como “um bando de católicas frustradas” até afirmações individuais apresentando a prostituição como “um trabalho escolhido”.

Face a este tipo de coligação que tinha atraído toda a atenção mediática, o coletivo abolicionista não tinha muito peso ao início. E no entanto, uma série de fatores auspiciosos juntaram-se e fomos bem sucedidas/os a passar a lei. Num texto de análise da situação (disponível no site Zéromacho), listei cinco fatores:

  1. Engajamento político. É a condição sine qua non : sem um engajamento político de representantes e ministras/os que apresentaram a lei, não poderíamos fazer nada. Neste caso, foi uma promessa de campanha de Hollande que foi concretizada quando se tornou presidente.
  2. A constitutição de um coletivo de associações. Em França, juntaram-se 62 associações, algumas especializadas em ajudar mulheres na prostituição, outras generalistas feministas, tal como Zéromacho, uma rede de homens engajados contra o sistema da prostituição. Em França, felizmente, a maioria das feministas também é abolicionista.
  3. As ações de mulheres que tinham saído da prostituição e que tinham testemunhado a violência intríseca da prostituição. Em França, Rosen Hicher, liderou uma marcha de 740 km de forma a sensibilizar os deputados da urgência da lei.
  4. A contribuição de médicas/os que testemunharam o estado mental e físico de mulheres na prostituição.
  5. A revelação do comportamento de prostituídores ricos e famosos, como Dominique Strauss-Khan, diretor do FMI, ou os futebolistas Franck Ribéry e Karim Benzéma, descontraídos após terem pago a uma rapariga de 17 anos por sexo, mesmo que a prostituição de menores já fosse ilegal.

Num mundo de igualdade, não haveria prostituição. Cada lei abolicionista é um progresso tendo em vista chegar a esse mundo.

Uma lei que não é aplicada é uma lei inútil e mesmo perigosa.

Devemos, por isso, monitorizar a aplicação da lei, o que significa:

  • Assegurarmo-nos de que existe sempre um orçamento reservado para as provisões da lei;
  • Contactar as pessoas responsáveis, os administradores diretivos, e conselhos locais para que cada departamento francês tenha a comissão indicada para estudar os casos de pessoas que querem sair da prostituição;
  • Interpelar os Ministros da Justiça e do Interior para que os polícias persigam de facto os prostituídores: em dois anos, duas mil contravenções foram feitas em apenas 4 departamentos franceses (há mais de 100).
  • Assegurar a formação de uma nova geração de polícias e de funcionários públicos relacionados com a justiça, bem como assistentes sociais;
  • Assegurar a integração de questões relacionadas com a prevenção da prostituição nos programas de educação sexual nas escolas.

Quanto ao ativismo, temos de continuar o trabalho pedagógico para ultrapassar os clichés sobre “necessidades masculinas” ou “a maior segurança dos bordéis”.

Ainda há muito trabalho para ser feito, mas o essencial foi conseguido: a lei que estabelece o princípio de que os proxenetas e os prostituídores são os únicos que merecem ser condenados, enquanto as pessoas na prostituição devem ser ajudadas a sair. Por fim, uma visão clara deste fenómeno de opressão mundial! Devemos esta clareza à Suécia, porque neste caso, a luz veio do Norte. Obrigada ao povo sueco que serviu a humanidade de forma brilhante!

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